[ABORTO] MARIA: não exclui a minha vontade de ter um filho, a diferença é que eu quero que seja uma escolha

Matheus Simão*

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O aborto, mais que uma questão de princípios é uma questão de saúde pública.  Em um estado laico, promover políticas públicas deve estar acima dos valores religiosos. A definição de quando começa a vida varia de acordo com cada crença. Para a Igreja, vida é o encontro de um óvulo e um espermatozoide, entretanto, é muito comum o embrião não conseguir se fixar na parede do útero, e assim, sendo expelido pelo corpo de forma natural. Então, isso seria acreditar que cerca de 50% dos seres humanos morrem nos primeiros dias. Muitos acreditam que vida é o oposto de morte e só começa quando as atividades cerebrais têm inicio, o que acontece por volta do 2º mês de gestação. Quando o cérebro de uma pessoa para de funcionar, ela não é dada como morta?

A legalização do aborto abre caminho a uma política pública responsável, que, isento de crenças religiosas, pensa nos direitos de todas as pessoas gestantes de forma igualitária. A proposição da descriminalização do aborto deve vir junto de uma política integral, que tenha como objetivo maior, a educação sexual para a conscientização de métodos contraceptivos acessíveis e aborto legal, seguro e gratuito para que não aconteçam mais tantos casos de mortes.

Entrevista

Você é a favor da legalização do aborto?

Sim, eu sou a favor da descriminalização do aborto e eu sou a favor da legalização do aborto. Eu acredito que nós mulheres somos proibidas de muitas coisas na sociedade em que a gente vive, e eu entendo que isso envolve diversas coisas: tem o capitalismo, o cristianismo, e muitos outros aspectos que influenciam no corpo da mulher e isso bate diretamente com o aborto. Eu entendo o impacto que gera na sociedade e o motivo de várias pessoas serem fechadas a falar sobre isso, por ainda ser um tabu, mas sim, eu sou a favor!

Como sabemos, o aspecto religioso influencia diretamente na opinião das pessoas em relação ao aborto. O que você acha disso? Isso pesou no momento de sua decisão?

Se eu dissesse que a religião não influenciou no momento da minha decisão, eu estaria mentindo. Até porque, eu cresci em um berço católico e só parei de frequentar a igreja depois de um tempo. Mas, eu acredito que isso é a legitimação da nossa ignorância, porque tem muitas questões por trás disso. As mortes que acontecem e o que vai acontecer com essa criança depois deveria ser uma pauta entre todas as religiões. O que eu quero dizer, é que elas colocam o lado sentimental em cima das mulheres, então, desde criança as meninas aprendem que ser mãe deve ser o sonho delas, que ser mãe é a melhor coisa do mundo, e crescem com esse sonho. E as religiões tem um impacto muito grande nisso, quando elas julgam que isso é errado e colocam o “lance” de que é uma vida, de que não pode... Só que é uma questão de não pensar no que acontece depois, ”tudo bem, é errado, mas essa criança vem ao mundo e o que acontece com ela?” Então eu acredito que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública.

Você acha que a criminalização do aborto é uma questão de desigualdade social e racial?

Sim, a criminalização do aborto é uma questão de desigualdade social e racial. Porque, pra começar, a gente vive em um país totalmente desigual. As mulheres ricas pagam uma clínica e abortam, as mulheres pobres e pretas morrem na tentativa de ter um aborto e são sempre da forma mais desumanas possíveis. Quando a gente compara uma pessoa de um bairro nobre com uma pessoa que mora na periferia -falando do quesito aborto- na maioria dos casos, a pessoa que tem dinheiro, a única preocupação dela é “tudo bem, eu não quero seguir com a gravidez porque vai atrapalhar meu futuro, então o que vou fazer? Vou abortar” Agora aquela mulher que mora na periferia, que tem que colocar comida na mesa, que tem que trabalhar todos os dias, estudar... A preocupação dela é o que vai acontecer depois “tudo bem, eu estou grávida, mas o que vai acontecer com essa criança depois?” Essa criança vai crescer, eu não vou conseguir manter essa criança, ela vai entrar no mundo do crime, e vai ser só mais uma pessoa que sofre com a desigualdade social no Brasil, entende?  Então, se o aborto é crime, ele tem que  ser crime de uma forma igual, e se a gente não vive em um país com igualdade, principalmente social e racial, como que a gente segue com uma lei assim, sabe? É que não faz sentido! O índice de desigualdade no Brasil, em todos os quesitos, é enorme. Então, o aborto é sim uma questão de desigualdade social e racial.

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Por que o aborto deve ser legalizado?

Porque todos os dias, muitas e muitas mulheres morrem na tentativa de abortar, e dentre todas essas mulheres, a maioria é preta e pobre. Então, o fato é que o aborto existe, a questão é o que será feito com isso.  No momento, a sociedade prefere colocar embaixo do tapete e não conversar sobre, criminalizar e pensar que o problema está resolvido, só que não está. A gente não pode se esquecer dos índices que não são computados, das mulheres que não conseguem falar sobre isso, das mulheres que não tem espaço pra falar sobre isso. Então, o aborto ele é uma questão de saúde pública. E também não podemos esquecer de todo machismo que existe no nosso país e no mundo. É colocada em cima da mulher uma questão de posse, a posse no corpo, nas atitudes e em tudo. Então o aborto também deve ser legalizado porque é um direito, deve ser uma escolha das mulheres abortar ou não abortar. É uma questão de necessidade em um país tão desigual.

O que te motivou a abortar?

Quando eu descobri que estava grávida, eu realmente percebi que existem sim falhas nos métodos contraceptivos, e eu realmente pensei no que aconteceria com essa criança quando ela nascesse. Ela seria mais uma criança preta, que movimentaria o sistema capitalista na base do trabalho, uma criança que eu não teria condições de manter. Porque, eu sou de uma família pobre, moro de aluguel, estudo, e não tenho uma estrutura familiar muito boa. Nessas condições, as chances dessa criança fazer parte da criminalidade seriam muito grandes. Então, essa criança só existiria de afeto e só o afeto não mantem ninguém vivo, só o afeto não dá comida, só o afeto não dá saúde, só o afeto não faz uma criança -um ser- continuar vivo. Eu pensei muito no depois, porque se for pra viver em um mundo cheio de desigualdade e tão injusto é melhor não vir, e eu foco tanto no quesito desigualdade, porque quando a gente pensa que as seis pessoas  mais ricas do mundo tem a “grana” pra acabar com a fome, é um fator totalmente assustador.

Foi uma decisão difícil?

Foi uma decisão difícil, porque eu cresci em uma família que me ensinou que ser mãe faz parte de um sonho, então, um dos meus sonhos era ser mãe. Eu vim de uma família com muitos filhos, e eu ter um filho era de extrema importância. Mas, foi preciso eu sentar, pensar, por em uma balança e não deixar todo fator sentimental tomar conta de mim, porque não, eu ainda não era mãe. A questão que colocam na vida de uma mulher quando ela descobre que está grávida, é que ela já é mãe, e não, eu não era mãe, eu não fui mãe. Foi uma decisão difícil, mas quando eu tomei essa decisão eu tive a certeza que isso era o melhor a fazer sim.

Você contou com o apoio de alguém?

Sim, eu contei com o apoio do meu namorado e da mãe dele, mas eu contei com meu próprio apoio, foi uma decisão nossa como casal, mas muito mais uma decisão minha como mulher e dona do meu próprio corpo. O apoio deles foi importante com certeza, porém, foi o meu próprio apoio que me ajudou.
Você se arrepende ou se sente mal por isso?

Não me arrependo, porque ainda sim eu não teria condições de manter essa criança, e eu não me sinto mal porque em nenhum momento eu fui mãe. A sociedade coloca um lado sentimental muito forte na mulher. Que ela deve ser mãe, que ser mãe é a coisa mais linda do mundo, que desde o momento que ela descobre que está grávida, ela é mãe... E não é bem assim que funciona. Então, eu não me sinto mal, porque foi a melhor decisão que eu poderia ter feito. O que me entristece é saber que eu tenho que ficar calada sobre isso, que eu não posso conversar e que eu sou uma criminosa... Mas eu não me arrependo.

Você pretende ser mãe algum dia?

Sim, eu quero ser mãe um dia. O fato de eu ser uma mulher que já realizou um aborto não exclui a minha vontade de ter um filho, a diferença é que eu quero que seja uma escolha, e que eu tenha condições de levar essa escolha à diante.

Em contribuição com a proposta do blog, Maria fez questão de deixar uma mensagem para outras mulheres, que assim como ela, tiveram que passar por isso: “Eu, já abortei e não me arrependo, não podemos esquecer que desconstruir é também construir. Desconstruir os pré-conceitos é esquecer tudo aquilo que já nos disseram um dia, que já nos foi imposto, e construir coisas novas. Isso exige um processo, e como todo processo, é demorado. Eu tento contribuir nessa desconstrução, mostrando de diversas formas pra as mulheres que estão ao meu redor o nosso empoderamento e nosso poder de fala. Que nós mulheres, precisamos falar e precisamos ser ouvidas, isso é muito importante quando a gente fala sobre aborto. Quando a gente cria essa pauta, é muito importante conversar com mulheres, e tentar entender todo o contexto do problema. É sobre entender o papel de uma mulher na sociedade no meio de tudo isso que a gente está vivendo. Eu não acredito que tenha uma resposta certa para isso, então é assim que eu tento contribuir, mostrando pra outras mulheres o poder que a gente tem, que por mais que o aborto seja crime, nosso corpo é nosso”.

Sendo legal ou não o aborto existe. Entretanto, a grande maioria das mortes ocasionadas por complicações após o aborto são daqueles que não têm acesso à informação e/ou condições para fazer uma interrupção segura. No Brasil, as mulheres negras têm duas vezes e meia mais chances de morrer durante um aborto do que mulheres brancas. Por isso, essa discussão não é sobre abortar ou não abortar e sim em quais condições elas irão abortar.

Por ainda ser criminalizado, muitas mulheres e pessoas gestantes se sentem inibidas em procurar ajuda médica, seja para abortar ou tratar complicações após abortos induzidos. A legalização seria a chance de concretizar o direito à saúde em todos os momentos, sem obstáculos de acesso morais ou legais.




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